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ilustre desconhecido

Literatura

A janela

A janela No lugar onde me depositaram para morrer, de permeio com o sofrimento, também há momentos de descontracção; em que olho este quadro vivo, que me proporciona a janela à direita do meu tumor, (não deveis estranhar esta referência: pois, desde há quatro anos, tudo na minha vida se organiza em torno desse animal, que me consome lentamente). A descontracção, dizia eu, surge nos intervalos da dor, quando consigo alhear-me de tudo o que me rodeia e seguir sem interrupções o percurso dos pombos correio na paisagem, estudar a sua organização social, os seus vícios, as suas missões, as suas ausências prolongadas e mesmo o desaparecimento definitivo de alguns: que choro, por serem eles a minha família, são eles que nada me escondem. Seres solidários e fiéis companheiros, por isso, quando me virem chorar, saibam que é pelos pombos que choro, não pela doença, não por falta de atenção, não por pena de deixar este mundo, mas sim pelos pombos correio, só pelos pombos. Não tenho raiva dentro de mim, como ouço em surdina, sempre que me irrito com o vosso cinismo. Só lhes peço que me entreguem definitivamente, sem despedidas, prossigam devorando-se uns aos outros no vosso mundo de egoísmos. Guerreiem pelo nada e pelo muito. Quanto ao meu lugar junto à janela... A minha hora está próxima, um pombo-correio aqui deste pombal, vos anunciará em breve a minha partida, e a quem aqui padecer, deixo-lhe os pombos, uma vez que nada mexe na paisagem, só o voo tracejante desses anunciadores do destino.


José Leal

A janela

A janela No lugar onde me depositaram para morrer, de permeio com o sofrimento, também há momentos de descontracção; em que olho este quadro vivo, que me proporciona a janela à direita do meu tumor, (não deveis estranhar esta referência: pois, desde há quatro anos, tudo na minha vida se organiza em torno desse animal, que me consome lentamente). A descontracção, dizia eu, surge nos intervalos da dor, quando consigo alhear-me de tudo o que me rodeia e seguir sem interrupções o percurso dos pombos correio na paisagem, estudar a sua organização social, os seus vícios, as suas missões, as suas ausências prolongadas e mesmo o desaparecimento definitivo de alguns: que choro, por serem eles a minha família, são eles que nada me escondem. Seres solidários e fiéis companheiros, por isso, quando me virem chorar, saibam que é pelos pombos que choro, não pela doença, não por falta de atenção, não por pena de deixar este mundo, mas sim pelos pombos correio, só pelos pombos. Não tenho raiva dentro de mim, como ouço em surdina, sempre que me irrito com o vosso cinismo. Só lhes peço que me entreguem definitivamente, sem despedidas, prossigam devorando-se uns aos outros no vosso mundo de egoísmos. Guerreiem pelo nada e pelo muito. Quanto ao meu lugar junto à janela... A minha hora está próxima, um pombo-correio aqui deste pombal, vos anunciará em breve a minha partida, e a quem aqui padecer, deixo-lhe os pombos, uma vez que nada mexe na paisagem, só o voo tracejante desses anunciadores do destino.


José Leal

O Licantropo

Um ar gélido atravessa-me a espinha

Tolhe-me os movimentos

A noite chega trazendo a cacimba e o silêncio que me petrifica

Um fluido pegajoso cola-se-me à pele

Estou ensanguentado

A ferida que julgava sarada voltou a sangrar

E hei-me de novo assustado na urgência de um recanto

Um local recôndito

Uma caverna qualquer

Não necessitarei já de curativos

Nem tão pouco de calor animal...

Anseio apenas adormecer esta dor e extinguir-me nela

Onde não estorve a passagem

Onde as moscas não dêem comigo e os pássaros me não biquem os olhos

Um buraco onde lamber as feridas

Longe dos olhares lancinantes de quem irrompe no amanhecer

Logo nascerá o dia e as luzes que me vigiam

Diluir-se-ão na manhã efervescente

Os humanos regressarão à cidade

Dilacerados, todos...

Feridos de morte, alguns

Disfarçam as chagas dos espelhos acusadores

Tal como eu

E tal como eu não podendo se esconder

Um momento que seja

Ao longo de todo um doloroso dia

Desesperados, aguardarão o cair da noite

Para lamber as feridas

Em silêncio

A sós

Muitos refugiar-se-ão aqui na serra

E aqui derramarão prantos selváticos sob as luzes da cidade que os destrói

E à qual terão que regressar com a alma tatuada de uivos silenciados

Sufocados

Até a noite os libertar




José Leal